segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O Ovo e a Galinha

- Olhe. Desculpe. É neste restaurante que se desvendam os mais ínfimos segredos do Universo? – Perguntei eu.
- Sim - respondeu-me o homem fardado de branco.
- E quanto custa?
- Nada, mas tem de mandar vir qualquer coisa. Não se pode descobrir os segredos do Universo se o cliente não consumir nada. Desculpe. Ordens da casa. – A perplexidade no meu olhar sensibilizou-o. – Posso sugerir-lhe uma especialidade do chefe? Frango assado na brasa. Simplesmente divinal.
- Frango assado é uma especialidade?
- Você nunca comeu frango como este!
- Está bem. Ainda não jantei, por isso…
- Óptimo! - O criado indicou-me uma mesa da enorme esplanada. Abarrotava de sofisticação.
Tentei agir com naturalidade, mas os nervos fizeram-me sentar com demasiada força. Os joelhos bateram na mesa, estremecendo copos e talheres. Olhei em volta. Estavam todos tão entretidos a conversar que não pareceram reparar no barulho que eu tinha feito. A pouco e pouco, fui ficando mais descontraído.
Estava bem localizada, a esplanada. Um restaurante em Júpiter teria sido interessante, mas descobrir uma casa de comes e bebes no princípio do Tempo tinha sido realmente uma fezada.
O criado deve ter considerado preocupante a minha ansiedade inicial, pois seguira os meus movimentos com ar de vigilante e agora não tirava os olhos de mim, como se estivesse à espera que lhe fizesse sinal. Levantei a mão como se estivesse a pedir desculpa por incomodá-lo. Ele veio logo: sorria e às vezes não sorria, como se a boca fosse um nó de gravata difícil de desapertar.
- Sabe – Falava pomposamente. – Dizer que este é um restaurante de cinco estrelas não é fazer-lhe justiça. Afinal de contas – e apontou para o negrume diante da esplanada – em breve poderá ver o nascimento de todas as estrelas do Universo: as que existirão agora e as que virão com o Tempo. Mas terá de consumir qualquer coisa.
- E se eu pedir uma cerveja?
- Desculpe, mas isto não é uma tasca. É um restaurante.
- Muito bem. Mas frango assado…
- É a especialidade da casa. Tem que ser.
- E se eu não quiser a especialidade da casa?
O criado ficou embaraçado.
- Caro senhor… Devo-lhe um esclarecimento. Tinha esperanças de evitar esta situação. É um bocadinho irregular, sobretudo num restaurante desta categoria, mas a única ementa no cardápio é frango assado. Peço-lhe imensa desculpa. Não estava previsto… Mas é o nosso prato do dia. O nosso prato da noite. De todos os dias e de todas as noites. Por isso é único.
Não estava com disposição para discutir.
- Claro – concedi, cheio de compreensão. – Venha esse prato, pronto!
O criado suspirou de alívio.
- Vou então tratar do seu pedido imediatamente, senhor!
- Eu já bebia uma cerveja – disse eu, aproveitando o facto de estar na mó de cima. – Já que a casa preza assim tanto os seus clientes, podia oferecer-me uma. Um restaurante desta categoria devia ter mais do que um prato!
O criado acenou em concordância, embora eu não tivesse conseguido perceber se estava a concordar comigo ou com a indiscutível categoria do restaurante. Não me deu tempo para tirar grandes conclusões, pois virou costas e dirigiu-se para a cozinha.
Recostei-me na cadeira e apreciei a paisagem. O princípio do Tempo podia vir a ser um espectáculo fantástico, mas para já estava fraquito. O que se conseguia ver da esplanada era um abismo tão negro e sufocante que nem a luz lhe conseguia escapar.
Tentei preencher os espaços, mas a imaginação não conseguia passar aquela barreira. Nada o conseguia – nenhum sentimento seria capaz de atravessar a fronteira da inexistência. Invadiu-me o peito uma sensação de claustrofobia que me fez suar em catadupa. Depois forcei-me a esquecer a sensação, observando a serenidade de todas as pessoas que, tal como eu, esperavam pelo início do espectáculo e do jantar.
Finalmente o criado chegou. Vinha ofegante e desta vez nem tentou sorrir.
- O chefe mandou dar-lhe um recado.
- Não me diga que não têm cerveja!
- Não é bem um recado, é uma pergunta.
O formigueiro da claustrofobia passeava-me no peito. Olhei para as outras mesas. Estavam vazias. Para onde tinha ido toda a gente?
O criado puxou de uma cadeira e sentou-se sem cerimónias.
- Quem nasceu primeiro? O ovo ou a galinha?
- O quê?
- O ovo ou a galinha! – Também estava com a testa coberta de suor.
- Meu caro amigo… Ora mas que coisa… Sei lá!
- Pense bem. Isto é uma oportunidade única para si. Ovo ou galinha?
Fiquei sem saber o que dizer, o que aumentou o nervosismo do criado.
- O Tempo está quase a começar. Já falta pouco. Não sei exactamente quanto é que falta porque, afinal de contas, o Tempo ainda não existe. Mas está quase! O Tempo é a consciência do Espaço, percebe? Sem o Tempo, o Espaço não consegue aperceber-se de que tem tamanho. Por isso é que esta merda está toda atrofiada. Vamos lá: ovo ou galinha?
- Mas que tenho eu a ver com isso?
- O ovo ou a galinha!?
- Há pelo menos duas possibilidades…
- Isto não é um concurso de respostas múltiplas!
- Calma! Estou a pensar em voz alta. O ovo não pode ter surgido primeiro porque não existia nenhuma galinha para o pôr. Por outro lado, a galinha não pode ter surgido primeiro porque antes de ser galinha ela era pintainho e o pintainho nasce do ovo. Ora, não havendo ovo…
- Qual é a sua resposta, então? O chefe está à espera!
Respirei fundo.
- Nem um nem outro.
O criado abriu-se num sorriso.
- Muito bem! A refeição ser-lhe-á servida imediatamente. - Levantou-se num ápice. - Aprecie o espectáculo do nascimento do Universo. Está na hora. Por pouco não nos atrasávamos. Vá, relaxe!
- Espere! E os outros?
- Quais outros?
- A esplanada estava cheia!
O criado olhou para as mesas vazias com indiferença.
- Pois… Não atinaram com a resposta. Qualquer dos caminhos que lhes propus conduzia a um beco sem saída do pensamento. - Deu-me uma palmadinha amigável nas costas. - Anime-se! Você foi o único que rejeitou a pergunta! Merece o seu lugar na esplanada. Parabéns!
Estava tão satisfeito comigo próprio que a sensação de claustrofobia desapareceu. Recostei-me na cadeira e esperei.
Não sei se terei adormecido.
Do negrume saiu o Espaço - uma sombra à procura da Luz, sugerindo sensações e cheiros e formas que não podia compreender ou explicar mas que aceitava como se fizessem parte do meu próprio corpo. Depois o Tempo chegou. Todo empoleirado, cheio de pujança e orgulho, encheu os pulmões e gritou:
- Cocorocó! Cocorocó!
E então eu talvez tenha acordado.

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